quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Um presente

Ele trouxe um teclado que comprara gastando o dinheiro que tinha guardado de um trabalho de verão, em uma pousada que ficava em algum lugar paradisíaco. "É pra você. Quem sabe um dia eu lhe compre um piano de cauda..." Eu me concentrei desde então na melodia oculta em partitura. O músico é um mágico. A partitura é uma cartola, e só o músico consegue tirar o coelho da cartola ou, quem sabe, fazer o coelho surgir de um nada. 

Gostar de criar melodias e escrever poemas e canções tem sido o dilema por que toda criação vem de um lapso de algo que, a princípio, não quero mostrar para o mundo. O desafio de expor sua obra é gritante, no meio desse mundo que cobra: "e aí, o que é que você tem de interessante pra mim hoje? Nada? Então passo pro próximo". Aí minhas canções talvez se desgastem nas folhas. Mas uma coisa é certa: elas têm que sair da cartola.




domingo, 30 de agosto de 2015

Mingau

Enquanto eu tentava fazer os versos da minha nova música (outra daquelas das quais só eu mesma tenho conhecimento), Douglas preparava  mingau, e perguntou se eu tinha cravos pra pôr, me lembrando da infância, e de como eu achava inútil aqueles cravos que a minha avó punha em tudo o que ela fazia. E agora, depois de anos que a "casa dos avós" deixou de ser algo palpável para mim, lá está meu novo, e ao mesmo tempo, antigo amigo preparando o mingau da mesma forma que minha avó fazia, e isso despertou em mim sensações há muito esquecidas: lembranças de um aconchego do qual toma conhecimento apenas quando ele não está mais ali, palpável.

Eu tenho a melodia da minha alma na cabeça, e falta tirar do peito, ou do cérebro, algo que seja só meu e ao mesmo tempo seja do mundo inteiro, da forma que só os grandes compositores fazem. Mas no momento eu tenho a melodia, e o que há por trás da ponte invisível a qual não sei por onde começar a construir. Poderia contar sobre os cem anos vividos pelo meu amigo, mas aí vem o problema da abundância, e eu não faço ideia de condensar cem anos em cinco minutos. 

A noite chega, e eu ainda não escrevi bulhunfas, mas é a fase da vida em que você apenas senta e espera. Eu estou com um ponto a mais, pois estou sentada e esperando e tomando mingau. Enquanto a sombra daqueles cabelos se projetam como nuvem negra na parede.







quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Medir contornos

Enquanto ele falava minha mente viajava por duas estradas ao mesmo tempo: a que ele conduzia e a que eu me conduzira em tempos remotos, tempos esses em que eu achava que tinha nascido poeta, por conta de uns versos avulsos. E porque não escrevia para impressionar ninguém, e sim a partir  do que pensava, mesmo que não pensasse em algo tão significativo assim. E era minha maneira de usar figuras de linguagem que tornavam um pensamento simples mastigável ao paladar daqueles que apreciam poesia (na verdade, de mim mesma). Então veio aquele cara e disse "você deveria pensar ao menos um pouco antes de escrever esse monte de lixo". E foi nesse dia que eu descobri que não era poeta coisa nenhuma e resolvi focar em descobrir o significado dos algarismos significativos, porque aí sim eu começaria a ter pensamentos significativos (assim eu pensava), e o resto eu já mencionei.

Penso que perdi minhas poucas habilidades de fala e escrita enquanto media coisas, e era por isso que eu não conseguia dizer nada em resposta às experiências que meu amigo falava. Então eu sorria e, creio eu, isso continuava servindo de combustível para que ele continuasse falando, falando e falando enquanto eu adentrava nas selvas que ele descrevia. Penso que, um dia, quando eu recuperar minhas habilidades de fala e escrita, poderei descrever sucintamente tudo que eu ouço agora. Por enquanto, e entretanto, bateu-me a recaída, e comecei a medir o contorno da sombra que meu amigo projetava naquela parede azul da minha sala, a única parede que não era ofuscada por móveis e/ou quadros. Os cabelos encaracolados que quase não permitiam que os seus olhos verdes reluzissem em minha direção, não passava de uma nuvem negra na parede.

Depois, lembrei-me de um dia, enquanto ainda buscava significados nos algarismos significativos, que havia outro cara, o qual disse: "você deveria pensar ao menos um pouco antes de se preocupar com esse monte de lixo", e estremeci, pois, nesse momento não sabia qual cara era o anterior e qual era esse de agora, como se a imagem de ambos se superpusessem. E experimentei a mesma sensação de tristeza que havia sentido naqueles dois momentos, quando desisti da poesia e quando desisti dos algarismos significativos. Imagino o que esse amigo acharia disso. Ele, que viveu cem anos em vinte e um, deve rir da minha cara. Talvez eu tenha vivido três anos em vinte.

Mas o contorno estava lá, como uma nuvem negra que se mexia e, surpreendentemente era a nuvem negra, e não o céu azul que me dava alguma ponta de esperança nisso tudo. O amigo perguntou se poderia dormir aqui. Eu disse que sim. Depois ele voltou e perguntou se poderia ficar aqui por um tempo. E eu disse que sim. Ele retribuiu com um sorriso, e percebi que sorrisos são contornos. Então a lição que ficou nisso tudo foi que é sempre bom lembrar que os cabelos encaracolados podem ser nuvens negras, e que as nuvens negras podem trazer esperança, e que um sorriso é um contorno de qualquer coisa que você só pode saber conhecendo a fundo a pessoa que lhe sorri. Mas, enquanto você não conhece, apenas mede, e é otimista.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Start

Some todos os lados dessa trança ambígua que era sua trajetória. As três pontas: lógica, lírica e sentimento se entrelaçavam a cada instante, sendo que o sentimento dava forma às mais belas linhas repletas de lírica.

Ludibriavam-me os versos escritos a favor da continuidade da trança. E eu, repleta já de confusão, resolvi esconder-me por trás das lógicas de algarismos significativos cujo significado eu nunca soube. Resolvi, depois, tentar me abastecer de tudo na vida e conhecer três pessoas novas por dia, viajar para três lugares novos por mês, e aprender sete novas habilidades por semana. O resultado disso, a curto prazo, foi um apunhalado de sentimentos agonizantes, pois no final do dia, não conhecia ninguém, salvo um ou dois, em dias de sorte e, como meu dinheiro diminuía exponencialmente e magicamente, não viajei e no final de um mês eu tinha conhecido cerca de três pessoas, viajado para nenhum lugar, mas aprendido cento e quarenta habilidades, a fim de compensar o não cumprimento das outras duas metas. E dentre essas habilidades estava a capacidade de medir qualquer coisa com a melhor precisão possível.

Aí, veio o que muitos chamaram depois de psicopatia. Meu quarto já não era preenchido por móveis, e sim por réguas, trenas, transferidores, paquímetros, micrômetros, etc. E eu comecei a medir tudo que veio na minha frente, desde uma formiga a um avião. Comecei a elaborar métodos mais sofisticados, para medir grandes distâncias. Comprei lentes para ampliar objetos ínfimos, porque aprendi a fazer escalas e, com telescópios potentes, conseguia descobrir a distância entre as estrelas e das estrelas para a terra.

Até que um dia, havia esse objeto impreciso que era a trança do meu próprio cabelo. Era um dia em que eu estava presa em casa por conta de uma chuva torrencial e, como já havia medido todos os objetos possíveis, restou-me meu corpo. E, do meu corpo, a trança. Mas o que eu mediria? A trança ou os fios de cabelo? Como era difícil medir os fios de cabelo sem desmanchar a trança, foi esse o desafio que acatei. E, pra ser ainda mais precisa, pegaria a medida de todos os fios e faria uma média, com variância e tudo.
 
Estava com todo o planejamento em mente, quando alguém entrou na casa, encharcado. Disse que vinha de um mundo distante e tinha vivido cem anos em vinte e um e precisava de um lugar para despejar suas experiências, pois, como eu já disse com outras palavras, ele já havia esgotado seu lote de vida em vinte e um. Era um amigo que eu não via a vinte anos, que foi quando o som do seu choro invadia meu berço de recém-nascida e eu me compadecia, devolvendo o seu choro com meu choro estrondante. E amigo que chora junto, está eternamente ligado, pro resto da vida. Eu esqueci da trança enquanto ele falava, e falava, e falava, e nesses instantes, em silêncio, senti-me mais útil do que enquanto media aqueles vinte e dois mil setecentos e quarenta e nove objetos.